'Humane': longa de estreia de Caitlin Cronenberg decepciona por falta de identidade própria
Com um roteiro difícil de engolir, filme não sabe para onde atirar - e acaba matando a si próprio
Escassez de água, fronteiras fechadas, raios ultravioletas cada vez mais intensos e perniciosos. O mundo, em colapso, busca alternativas para enfrentar uma crise climática de patamares catastróficos. Em acordo global, chefes de Estado decidem propor aos seus concidadãos a drástica medida: reduzir a população global. Como? Uma intensa campanha de “alistamento voluntário” - com recompensa financeira aos familiares - para quem aceitar morrer, literalmente, pela humanidade. Este é o mote do distópico Humane (2024), primeiro longa-metragem de Caitlin Cronenberg (filha do mestre do body horror, David Cronenberg), recém-lançado nos cinemas norte-americanos.
Apesar da interessante premissa, o filme opta por uma reflexão circunscrita: o núcleo familiar de Charles York (Peter Gallagher), famoso jornalista de televisão, agora aposentado. Ao lado da esposa Dawn Kim (Uni Park), o patriarca convida os três filhos (e uma neta) para um jantar especial, no qual anuncia a decisão do casal de se voluntariar na campanha do governo. A partir deste ponto, a produção enfoca nos dramas que permeiam a dinâmica familiar, preferindo examinar os temas em pauta através de um viés micro. Até aí tudo bem: um filme transcorrido quase por completo na mesma locação (a mansão da família), de poucos personagens e argumentos iniciais que prometem uma escalada na tensão. Recordo de obras nos mesmos moldes - como o ótimo Tudo em Família (1998), de Jee-Woon Kim - extremamente exitosas em suas propostas.
Não é o caso, nem de longe, de Humane. Buscando habitar um lugar entre a sátira social e o sci-fi com elementos horror (sim, aquele terreno cronenberguiano tão característico), a narrativa peca no elemento mais estruturante: um roteiro que, sem saber para onde mirar, atira para todos os lados e acaba matando a si próprio. Luto ao máximo para evitar a comparação, mas me permitam apenas uma: se David Cronenberg utiliza o humor de maneira subcutânea, sutil, para realçar o absurdo em filmes como A Mosca (1986) e Existenz (1999), o filme de Caitlin é um exemplo desacautelado, onde a tentativa de causar riso é tão explícita - e frágil - que leva o espectador à frustração. Para agravar a situação, o elenco de Humane tem o carisma de um paralelepípedo. As atuações pífias, de atores como Jay Baruchel e Sebastian Chacon, soam tão despreocupadas, no sentido de desinteressadas, que transmitem esse sentimento de desimportância ao público. Difícil adentrar aquele universo inautêntico, cujos personagens não nos conquistam.
Há esforço, admito, nas decisões estéticas da cineasta. A presença marcante da cor azul, nas roupas dos personagens a objetos em cena, corrobora a sensação de frieza daquele ambiente familiar, inundado de cinismo. Por outro lado, dentro das limitações impostas em filmar em poucas locações internas, Caitlin Cronenberg lança, aqui e ali, planos um pouco mais elaborados, jogando com sombras e luz. Nada muito requintado; demonstra, antes, a tentativa da diretora estreante de sublinhar sua identidade à obra. O resultado final, entretanto, é um filme pasteurizado, sem vida e desprovido de qualquer traço autoral.
À sombra do pesado sobrenome que carrega, Caitlin Cronenberg aparenta ter buscado reproduzir alguns passos narrativos do pai (e do irmão, Brandon), com o característico olhar para um futuro distópico, no qual a lógica capitalista atingiu seu ápice de surrealismo moral e ético. Infelizmente, Humane se mostra um rumorejo de ideias desordenadas, mesmo imaturas, acerca das relações humanas em um futuro-presente. Uma obra descuidada e fadada ao esquecimento.